Onto o quê?
Na adolescência, com angústias na mesma proporção de minhas espinhas, participei de um seminário de ontopsicologia. Você deve se perguntar: que raios o “onto” faz antes de “psicologia”? Responderei: assim como a palavra “comigo” é uma redundância por trazer em sua construção duas vezes a palavra “com”, a nova modalidade de psicologia pode carregar algum passado lingüístico curioso. O fato é que aquele curso foi um verdadeiro desvio histórico de linguagem. Explico-me.
Estava eu entre alguns adolescentes ricos em um curso para liderança. Que medo! Minha tia, irmã de minha mãe, patrocinou-me essa aventura. “Você será uma líder”, dizia. E assim eu me vi entre um grupo de dez filhos de políticos e empresários de sucesso. Nós seríamos orientados por duas psicólogas, ou melhor, ontopsicólogas. Estávamos num hotel fazenda de interior, gigantesco e cheio de gente bem vestida.
Na época, eu fazia teatro e estava aprendendo a me entregar, de verdade, a cada nova experiência. “Mais uma vivência para o repertório. Agora só falta isso, aquilo, aquele outro...”, pensava em uma lista sem fim. Foi a fase em que eu não queria mais pentear o cabelo ou trocar de roupa. Não raspava os pêlos do braço ou da perna, usava aparelhos nos dentes e óculos para míope. Negava a aparência das coisas e dizia que as pessoas só existiam por meio de suas histórias.
O curso era dividido em grupos de discussão para análise de filmes, de sonhos, de signos etc. Para evitar constrangimentos, havia seções individuais com Josiane, a gaúcha que dava o curso. Nesses encontros, deveríamos contar os sonhos ou pesadelos que nos divertiram ou amedrontaram durante a noite anterior. Assim, antes de dormir, eu me preparava para ter os sonhos mais mirabolantes. Criava histórias com a intenção de sonhar com elas. Mas mesmo que meus planos falhassem, dava-me ao trabalho de inventar alguma bobagem cheia de signos para contar.
No terceiro dia, as “ontopsicólogas” deram uma aula de “ontodança”. Para começar, nós fizemos um círculo, de mãos dadas. Fechamos nossos olhos. No mesmo lugar, deitamos no chão. Josiane colocou uma fita cassete estranha. Algo cheio de batuques e notas perdidas. “Relaxem. Quando sentirem vontade, ainda de olhos fechados, comecem a se movimentar com os sons. Dancem”. Eu estava acostumada com aquele tipo de exercício. Tanto em casa, com minha mãe zen-hippie-roll, quanto nas aulas de teatro, aquele tipo de proposta era constante. Entreguei-me.
Comecei a mexer as mãos. Os pés. Fiquei de joelhos e fui levantando, devagar. A cabeça sempre por último. Ainda com os olhos fechados, comecei a pular, de acordo com os “tuns” da música. Não dava para exibir minhas habilidades em tango, bolero, maculelê. Aquele fundo sonoro não lembrava nenhuma “dança social” conhecida. Segui. Mexia a cabeça nos “toins”, as mãos durantes as notas agudas; a boca durantes os silêncios; a barriga, quando a sonoridade era grave demais. Tratei de balançar cada milímitro de meu corpo.
Aos poucos, ouvi uma risada. E outra. E mais outra. Desconcentrei-me, mas mantive a pose. Afinal, as “onto” estavam por lá, prontas para analisar os pupilos. Resolvi, disfarçadamente, espiar, de canto de olho, o motivo do riso. Ninguém mais dançada. Em cada espaço da sala, um e outro estavam olhando para mim. Ahh. Eu era a única que até aquele momento não havia traído a proposta da ontodança e aberto os olhos.
Já que o mico estava feito, que eu o pagasse com categoria. Fui diminuindo o ritmo. Sentindo menos os tuns e tans. Respirando lentamente e... ouvindo mais... os tuns, e os tans, e os toins, e os tuns... Sem parar os movimentos de ontodança, fiz a fita rodar até gastar. Percorri todo o espaço da sala –afinal, já sabia que não havia ninguém por ali. “In the dark, dancing” como Bjork.
Talvez aquela linguagem fosse errada para a situação. Estava em um curso de “antas” para liderança.
"Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem
um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem
Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina
Ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Procurando bemTodo mundo tem..."
CIRANDA DA BAILARINA - Edu Lobo - Chico Buarque/1982
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