Tuesday, July 01, 2003

Onto o quê?


Ballerina - Edgar Degas


Na adolescência, com angústias na mesma proporção de minhas espinhas, participei de um seminário de ontopsicologia. Você deve se perguntar: que raios o “onto” faz antes de “psicologia”? Responderei: assim como a palavra “comigo” é uma redundância por trazer em sua construção duas vezes a palavra “com”, a nova modalidade de psicologia pode carregar algum passado lingüístico curioso. O fato é que aquele curso foi um verdadeiro desvio histórico de linguagem. Explico-me.

Estava eu entre alguns adolescentes ricos em um curso para liderança. Que medo! Minha tia, irmã de minha mãe, patrocinou-me essa aventura. “Você será uma líder”, dizia. E assim eu me vi entre um grupo de dez filhos de políticos e empresários de sucesso. Nós seríamos orientados por duas psicólogas, ou melhor, ontopsicólogas. Estávamos num hotel fazenda de interior, gigantesco e cheio de gente bem vestida.

Na época, eu fazia teatro e estava aprendendo a me entregar, de verdade, a cada nova experiência. “Mais uma vivência para o repertório. Agora só falta isso, aquilo, aquele outro...”, pensava em uma lista sem fim. Foi a fase em que eu não queria mais pentear o cabelo ou trocar de roupa. Não raspava os pêlos do braço ou da perna, usava aparelhos nos dentes e óculos para míope. Negava a aparência das coisas e dizia que as pessoas só existiam por meio de suas histórias.

O curso era dividido em grupos de discussão para análise de filmes, de sonhos, de signos etc. Para evitar constrangimentos, havia seções individuais com Josiane, a gaúcha que dava o curso. Nesses encontros, deveríamos contar os sonhos ou pesadelos que nos divertiram ou amedrontaram durante a noite anterior. Assim, antes de dormir, eu me preparava para ter os sonhos mais mirabolantes. Criava histórias com a intenção de sonhar com elas. Mas mesmo que meus planos falhassem, dava-me ao trabalho de inventar alguma bobagem cheia de signos para contar.

No terceiro dia, as “ontopsicólogas” deram uma aula de “ontodança”. Para começar, nós fizemos um círculo, de mãos dadas. Fechamos nossos olhos. No mesmo lugar, deitamos no chão. Josiane colocou uma fita cassete estranha. Algo cheio de batuques e notas perdidas. “Relaxem. Quando sentirem vontade, ainda de olhos fechados, comecem a se movimentar com os sons. Dancem”. Eu estava acostumada com aquele tipo de exercício. Tanto em casa, com minha mãe zen-hippie-roll, quanto nas aulas de teatro, aquele tipo de proposta era constante. Entreguei-me.

Comecei a mexer as mãos. Os pés. Fiquei de joelhos e fui levantando, devagar. A cabeça sempre por último. Ainda com os olhos fechados, comecei a pular, de acordo com os “tuns” da música. Não dava para exibir minhas habilidades em tango, bolero, maculelê. Aquele fundo sonoro não lembrava nenhuma “dança social” conhecida. Segui. Mexia a cabeça nos “toins”, as mãos durantes as notas agudas; a boca durantes os silêncios; a barriga, quando a sonoridade era grave demais. Tratei de balançar cada milímitro de meu corpo.

Aos poucos, ouvi uma risada. E outra. E mais outra. Desconcentrei-me, mas mantive a pose. Afinal, as “onto” estavam por lá, prontas para analisar os pupilos. Resolvi, disfarçadamente, espiar, de canto de olho, o motivo do riso. Ninguém mais dançada. Em cada espaço da sala, um e outro estavam olhando para mim. Ahh. Eu era a única que até aquele momento não havia traído a proposta da ontodança e aberto os olhos.

Já que o mico estava feito, que eu o pagasse com categoria. Fui diminuindo o ritmo. Sentindo menos os tuns e tans. Respirando lentamente e... ouvindo mais... os tuns, e os tans, e os toins, e os tuns... Sem parar os movimentos de ontodança, fiz a fita rodar até gastar. Percorri todo o espaço da sala –afinal, já sabia que não havia ninguém por ali. “In the dark, dancing” como Bjork.

Talvez aquela linguagem fosse errada para a situação. Estava em um curso de “antas” para liderança.


"Procurando bem

Todo mundo tem pereba

Marca de bexiga ou vacina

E tem piriri, tem lombriga, tem ameba

Só a bailarina que não tem

E não tem coceira

Berruga nem frieira

Nem falta de maneira

Ela não tem

Futucando bem

Todo mundo tem piolho

Ou tem cheiro de creolina

Todo mundo tem

um irmão meio zarolho

Só a bailarina que não tem

Nem unha encardida

Nem dente com comida

Nem casca de ferida

Ela não tem

Não livra ninguém

Todo mundo tem remela

Quando acorda às seis da matina

Teve escarlatina

Ou tem febre amarela

Só a bailarina que não tem

Medo de subir, gente

Medo de cair, gente

Medo de vertigem

Quem não tem

Confessando bem

Todo mundo faz pecado

Logo assim que a missa termina

Todo mundo tem um primeiro namorado

Só a bailarina que não tem

Sujo atrás da orelha

Bigode de groselha

Calcinha um pouco velha

Ela não tem

O padre também

Pode até ficar vermelho

Se o vento levanta a batina

Reparando bem, todo mundo tem pentelho

Só a bailarina que não tem

Sala sem mobília

Goteira na vasilha

Problema na família

Quem não tem

Procurando bemTodo mundo tem..."

CIRANDA DA BAILARINA - Edu Lobo - Chico Buarque/1982

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