Sunday, September 14, 2003

A fabricação da realidade


Kaspar Hauser, jovem criado em um sótão sem contato social até 18 anos, século XIX, na Alemanha. O filme intitulado “O Enigma de Kaspar Hauser” (em alemão: “Cada um por si e Deus Contra Todos”), de Werner Herzog, começa pouco antes de Kaspar ser retirado do esconderijo no qual fora mantido até 1828. Ele não sabia falar, andar, relacionar-se socialmente. Seu guardião, que o visitava apenas para dar-lhe comida, resolveu deixá-lo na praça de Nuremberg, com uma carta na mão como referência. Kaspar, que fora privado durante toda sua vida de qualquer bagagem social ou lingüística, deparava-se com sombras jamais imaginadas. De repente, o mundo ganhou formas animadas e inanimadas, cores e grandeza, vazio e solidão.

O filme mostra o choque deste primeiro contato com o mundo exterior. Como será que Kaspar interpretaria a vida e o mundo do lado de fora da cela? Kaspar não tinha referente, ou seja, segundo Platão, ele não possuía uma idéia de cavalo e nem mesmo a visão de sua sombra. Por sua vez, tudo assustava nesse estranho mundo novo: as dimensões, os movimentos, a lógica, a perspectiva, o pensamento, a fala, o riso.

Em entrevista exclusiva, o professor Izidoro Blikstein, do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), fala mais da relação entre prática social, linguagem e percepção de mundo.

P. - Kaspar seria como um analfabeto no começo do filme. Qual a importância do domínio da língua?

Blikstein: Desde a metade do século passado, o francês Emile Benveniste já apontava a língua como um grande sistema interpretante. No livro “Problemas de Lingüística Geral”, ele mostra a língua como o interpretante de todos os outros sistemas de comunicação. Você quer falar de um filme, você usa o sistema lingüístico, você quer falar de um quadro, você usa o sistema lingüístico. Para contar um sonho, você usa o sistema lingüístico.

P. - Só através da língua se produz pensamento?

Blikstein:A escola, sem querer, instituiu a língua como interpretante de todos os outros sistemas de comunicação. Cria-se um pensamento lingüístico. Uma reflexão se dá por meio de um pensamento lingüístico. Nós descrevemos uma foto, falamos um sonho, escrevemos nossos pensamentos, etc. Porém, não existe só o pensamento lingüístico. Existe também o pensamento visual. E quem sabia disso era o cineasta Sergei Eisenstein (conhecido por seu filme “O Encouraçado Potemkim”, de 1925). Ele dizia que a gente podia falar por imagens também: um pintor fala com sua tela, um fotógrafo fala com sua foto, e assim vai...

P. - Mas quando eu penso sobre uma foto, eu reflito sobre ela por meio da língua?

Blikstein: Não obrigatoriamente. Nós não precisamos pensar por meio da língua. Posso traduzir essa imagem em outras imagens também. Mas acontece que a nossa educação é lingüística. Existe este vezo que nos faz traduzir tudo por palavras. Para ilustrar, uma vez o cineasta Stanley Kubrick foi convidado para falar sobre o filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”. Ele disse: não é um filme para se falar a respeito, mas para ser visto. Ponto. As imagens falam por si.

P. - O analfabeto funcional, professor, tem o pensamento visual mais forte que o pensamento lingüístico?

Blikstein: Às vezes, o pensamento visual se torna frágil, debilitado pela influência do pensamento lingüístico. Pode-se trabalhar com o analfabeto funcional por meio de imagens, dando uma foto para ele analisar, por exemplo. Seria explorada a percepção visual dele. Um filme mudo de Chaplin , uma foto. Ele poderia falar muito a respeito. Mas a língua, por força do pensar ocidental, é o grande interpretante. O Kaspar tem um pensamento visual . Ele consegue refletir sobre o que ele vê e elaborar um pensamento sobre aquilo. Na verdade, como ele não tinha prática social, ele elabora um pensamento que não coincide em nada com a lógica da sociedade.

P. - Quanto menor for o domínio da língua, maior seria a tendência à estereotipia, unilateralidade e visão monológica da realidade? A falta de repertório lingüístico acarreta em uma catalogação das coisas sem um questionamento prévio?

Blikstein: Concordo plenamente. "Viver é perigoso" como nos adverte João Guimarães Rosa. Vamos entrar no universo conotativo e aí viver é perigoso. O problema do analfabetismo funcional é que a língua aprisiona as idéias, os lugares-comuns, os estereótipos e o indivíduo não é capaz de refletir criticamente.

P. - Poderíamos dizer que, no fim das contas, é a língua que domina o homem e não o contrário?

Blikstein: Roland Barthes foi convidado para uma aula sobre linguagem, no Colege de France, o ponto máximo da academia. Ele começou a palestra assim: toda a linguagem é fascista. E ele explicou: à medida que a linguagem aprisiona, cria estereótipos, banaliza os pensamentos ela passa a exercer um controle autocrático. As práticas sociais convivem com a língua e com a percepção do mundo, uma é tributária da outra em um verdadeiro círculo vicioso. Então, diria, que a língua domina o homem, sim.

Blikstein fala do momento que antecede a fase de transformação da realidade (desconhecida) em referente (qualificável). Isso acontece da seguinte forma: o objeto conhecido, já catalogado em nossas mentes, recebe o nome de “referente” em diversas teorias de análise de linguagem. Sabe-se, no entanto, desde de Platão, que o “referente” é somente uma “idéia de realidade”, entre muitas que cada observador pode ter. O referente nada mais é do que a nossa fabricação da realidade.

Livros e filmes citados:
Blikstein, Izidoro. Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade. São Paulo: Cultrix: 2003
Rosa , João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1986
Herzog, Werner. O Enigma de Kaspar Hauser.

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