Tuesday, February 27, 2007

Quando fecho os olhos...


O biólogo holandês Bernard Groosjohan disse-me enquanto almoçávamos na cantina da universidade, no meu segundo dia de visita à Beira: “Todo brasileiro tem certo fascínio romântico pela África”. Aquela frase martelou minha cabeça até o fim do almoço. Este deslumbramento da brasileirada pela África talvez seja em consideração e culpa ao escravismo passado, ou devido à influência da cultura africana na religião, música e gastronomia, ou até mesmo por puro esquecimento dos mais concentrados babalorixás, que perdidos entre outros sabores e o calor da terra do carnaval, engoliram a desventura do continente africano com fumaça.

Fui para Beira acompanhar uma oficina para estudantes de medicina, na única universidade da região. Estou envolvida profissionalmente com assuntos sobre a crise da saúde pública e educação na África há mais de um ano e quis vivenciar esta primeira visita conforme o programa. Segurei os passos de Alice na mala, que recebeu avisos para não sair sozinha pela cidade. Mesmo se quisesse, não havia tempo para isso. A descoberta de Moçambique aconteceu em discussões, reuniões e jantares.

Um retrato
Beira é a segunda maior cidade do país, com 500 mil habitantes. Principal saída de mercadorias do leste do continente, o porto da cidade vibra no vaivém de produtos do Zimbábue, Zâmbia, Malaui, Botsuana e Congo. Há prostituição, drogas e todas as outras características de qualquer cidade portuária, com uma diferença: Beira grita um dos índices mais altos de HIV no país, com 20% de prevalência. Você fez a conta? Entre cada cinco pessoas, uma pode estar contaminada.


A capacidade da rede elétrica é precária. Mais de 95% da população não tem acesso à eletricidade e usa fontes de combustível de biomassa, como lenha e carvão. Toda a infra-estrutura de Beira foi destruída na guerra civil, que só acabou em 1994. A pobreza absoluta deve ser ligada à falta de acesso a necessidades básicas, incluindo água potável. De acordo com a ONU, aproximadamente 80% do país vive com menos de 2 dólares por dia.

Sobreviver
Um grupo de estudantes tentava definir uma dieta balanceada viável para um pescador que vive com 1 dólar por dia e tem HIV? Para meu espanto, mesmo entre moçambicanos (que conhecem soluções locais), não foi possível encontrar uma resposta convincente.
- Todo sujeito tem maxamba (horta), seja pessoal ou da família. Eu pediria para o sujeito plantar um pé de laranja que cresce rápido, reservar o peixe mais barato de seu dia de pesca para sua família e mandar a mulher dele colher arroz no arrozal (no caminho do aeroporto para a cidade, é possível ver muitas mulheres colhendo arroz, sem camisa, embaixo do sol). Ele pode gastar parte do dólar para comprar carvão e óleo, que se vende em saquinhos pequenos.
- Como você sabe que ele é casado?
- Depois da guerra civil, com tanta morte, há 4 mulheres para cada homem. Todo homem é casado e tem relações extra-conjugais.
A prática de ter mais de uma parceira, da falta de direitos da mulher, do crença de que quem transmite doença é a mulher, de que a maioria das doenças podem ser tratadas em curandeiro são fatores sócio-culturais importantes para entender a disseminação do vírus na região.



Será que os místicos tinham razão: mergulhe no momento presente e encontre calma e plenitude. Na África que eu vi, o povo precisa viver cada dia como se fosse último, sem o menor romantismo, um sentido de hoje e aqui. Qual saída? O passado é marcado por guerra, sangue e pó; o futuro pode nunca chegar. E mesmo tão no agora, não há muitos rostos marcados por serenidade.

2 comments:

Lucia Freitas said...

Como pode? você nos deu de presente um relato fiel e ao mesmo tempo doce sobre uma situação tão dura! Trouxe à tona o melhor da humanidade, Pati. Deu vontade de lutar por Moçambique até o fim dos tempos. Na verdade, uma luta por todos nós, terceiros-mundos, fins de picada e correlatos...
Lindo post, moça!
Parabéns.

Ana Carmen said...

Lindo texto, que deixa gosto de quero muito mais, capítulos, posts sem fim.

Pude enxergar com clareza surpreendente Beira, tão à margem do meu cotidiano e tão perto de minha realidade.