Four
Ampulheta. O presente se esvazia para justificar o passado. O homem recorta um fato daqui, costura um ato de lá, refaz o mundo à sua imagem. Eis quando a criação asfixia o amanhã. O fôlego fica para o enganoso direito de punir e impor sofrimento, de defender, vingar, banalizar a vida. O homem confere tons sangrentos à realidade. Desde Cristo, as prerrogativas da justiça parecem baseadas na dor e no erro. Como se engano, dano, mentira e culpa pudessem ser boas referências para qualquer ação futura. Sinfonia de loucos. Ouvimos o grito áspero dos inflexíveis, notas desafinadas dos precoces, solos bombásticos: o ódio descabido ecoa em trechos arranjados à força. O assassínio soa grave; a guerra, surda.
Amareto amanhaceu amarela. A família Espiga estava decidida a expulsar o cão da face da terra. Se o cão também exalava aversão aos espigas, não tinha manha nem para enxotar pulgas do próprio corpo.
Os moradores da cidade não entendiam o porquê do rebuliço. Afinal, desde quando cachorro mijar é inesperado? E se o pobre invadira o terreno para remarcar antigo território, ora, isso só dignificava sua existência animal. O despautério estava no fato dos novos moradores encararem o mijo como ameaça. O cão ganhava ares de Deus-chacal.
Eu estava atolado em confusão. O pedido de socorro do cão, a lua cheia, o mijo ácido, a garrafa, o sangue... Tentei conversar com o cachorro mais uma vez, mas o bicho não se manifestou. Teria me negado confidência ou eu perdera a capacidade de ouvi-lo? Qual fosse a resposta, não insisti contra a natureza. Na noite anterior, já havia me arriscado o suficiente.
Meu pai, ao ver tamanha bulha, resolveu conversar com a família estrangeira. Mesmo que os Espiga não se esforçassem por uma aproximação com os moradores de Amareto, também não deveriam querer a rejeição. - O seu filho e o maldito cão, que aprendam os limites de minha casa! – disse seu Jacó.
Ponderação e diplomacia é uma característica dos bons comerciantes. Ah, como o velho Calixto da Matta sabia conversar! Não se exaltou, mas também não se intimidou. Falou com Jacó, num tom amigo. A cidade acompanhava o diálogo. - Vocês vão aprender a conviver. De Amareto, ninguém sai. – esclareceu meu pai.
Qual o quê? No dia seguinte, seu Jacó contratou uma empresa de segurança. Iniciariam a construção de um muro ao redor do terreno. Era o primeiro muro da cidade. Para arrematar, todo o contorno ganhou cercas elétricas.
Desesperança. Tijolo por tijolo, a parede excluiu Amareto. O muro tinha cara de desforro. Esvaziamento do tempo... Divisória justificada no ontem. Areia parada na ampulheta.
CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO
... Um túnel!
1 comment:
Four, Quatro, Quatre...
Sobe o muro, nasce a exclusão
E revela-se o indizível: deixar fora o que nos cerca
Lindo, Pati
Valeu!
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