Two
Estavam já há quatro meses no terreno dos Oliveira, aqui na pequena cidade mineira de Amareto, por conta da enigmática pesquisa federal. Mesmo assim, a distância de nossa vizinhança ainda era a medida de nossa indiferença. Do cão, os Espigas recebiam hostilidade latente. De Amareto, interrogação constante. De mim, o avesso da saudade. Era como se a família Espiga carregasse o peso da fatalidade.
O cientista era casado com dona Gorda Espiga, filha de belgas. Da epopéia de sua longa e trágica vida, pouco me dediquei ao registro. Tantos detalhes. Na memória, ficou o essencial: por confusões do destino, os pais de Gorda também se mudaram para o Paraná, nos anos 40. Lá ela nasceu, cresceu e conheceu Jacó, com quem casou e teve dois filhos, Ari, da minha idade, e Tamara, dois anos mais nova.
Meu pai, seu Calixto da Matta, era o único comerciante do vilarejo. Vendia frutas, legumes, verduras, laticínios, carnes, bebidas, biscoitos, doces, pães, bolos, aviamentos de costura, remédios e outras miudezas. Todos conheciam e respeitavam o velho. Não demorou muito para dona Gorda -quem a obesidade só no nome trazia- vir à venda. “Virou cliente fiel”, dizia meu pai, sem se dar conta que a lealdade tinha pouco de gloriosa em tamanha ausência de concorrência.
Toda vez que dona Gorda e seus filhos passavam pela rua, o cão levantava e ficava com o olhar fixo e vazio. Eu encarava o bicho, na esperança de adivinhar o que ele pressentia. “O que você pode ver?”. Tanto fiz para ler sua mente, exercitar telepatia, penetrar sua alma, descobrir tais mistérios que, naquela tarde, obtive permissão. “Ajuda”. Pulei para trás assustado. “Preciso de ajuda”. Ele falou, calou e dormiu.
Voltei para casa, sem conseguir esquecer o diálogo. “Ajuda”. Será que ele falou comigo ou a imaginação quis colorir nosso silêncio? Desde quando cachorro fala? Da janela, fiquei a guardar o cão, numa inversão de papéis. Quando a lua trouxe ilusão à terra, o bicho acordou. Sonâmbulo, atravessou o portão dos Espiga.
CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO
... Sangue, sangue!
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